Precisamos de truques novos: biorrefinarias e biogás! Confira matéria da Associação Brasileira de Engenharia Química (ABEQ)
Olá, leitoras e leitores. Minha impressão sobre o Brasil (e o mundo) é que a causa de boa parte dos problemas e incômodo generalizado das pessoas é que a Ciência e a Tecnologia avançaram muito mais rápido do que o conhecimento médio das pessoas. No Brasil, com o nosso descaso secular com a Educação, isso é ainda pior. O mundo está de fato cada dia mais complexo, complicado, e a sensação de estarmos perdidos na nossa vida cotidiana é cada vez mais comum. A consequência é a busca por soluções fáceis e reconfortantes, e um ambiente onde populistas, homeopatia, astrologia, medicina integrativa e outros que tais abundam e pioram tudo.
Algo não tão radical como os exemplos anteriores, mas igualmente pernicioso, é a repetição de solução antigas, que podem ter funcionado no passado (normalmente não), mas que não fazem sentido neste admirável mundo novo. Aqui entram quinquênios, barreiras alfandegárias, incentivos à indústria automotiva (antiga) e hidrelétricas e poços de petróleo na Amazônia.
Os meios de comunicação não se cansam de exaltar que “na nova economia baseada em sustentabilidade, o Brasil tem oportunidades únicas para se desenvolver”. Se você apurar os ouvidos, vai ouvir o coro “210 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção”, porque na prática, a teoria é outra.
O presidente da Petrobrás anunciou em agosto de 2023 que a empresa pretende reativar a Ansa – Araucária Nitrogenados S/A, que está desativada desde 2020 e, após investimentos e adequações para atender às normas regulatórias, poderá voltar a operar no primeiro semestre de 2024.
O anúncio foi feito na presença de lideranças políticas estaduais e federais, além de representantes sindicais.
A matéria-prima usada na unidade é o resíduo asfáltico, que pode ser obtido na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar). Em abril, a Petrobrás anunciou a aprovação do negócio pela diretoria executiva.
Quem acompanha os textos deste espaço sabe que há a defesa constante da produção local de amônia e ureia, e a Ansa tem capacidade de produção de 720 mil t/ano de ureia e 475 mil t/ano de amônia, além de 450 mil m³/ano do Agente Redutor Líquido Automotivo (ARLA 32).
O problema é que a Ansa faz isso a partir de resíduo asfáltico. Isso é um problema porque a matéria-prima padrão no mundo hoje para a produção de amônia, e de fertilizantes nitrogenados, é o gás natural. Produzir a partir de resíduo asfáltico significa fazer mais caro e poluindo mais.
O problema é ainda pior, pois o Brasil não consegue produzir amônia a partir de gás natural, devido aos preços proibitivos da matéria-prima no país. Vamos retomar a história recente:
• Durante os governos Lula 2 e Dilma 1, a Petrobrás expandiu muito seus projetos, incluindo a construção de três plantas de fertilizantes nitrogenados, em Três Lagoas-MS, Linhares-ES e Uberaba-MG, que nunca foram finalizadas;
• Durante o governo Bolsonaro, as Fafens (fábricas de fertilizantes nitrogenados) da Petrobrás em funcionamento, localizadas em Araucária-PR (a referida Ansa), Camaçari-BA e Aracaju-SE (Laranjeiras) foram postas em hibernação por falta de viabilidade econômica. Na mesma época, a Petrobrás tentou vender as plantas em construção, mas não encontrou interessados.
• Ainda no governo Bolsonaro, a Unigel arrendou as Fafens da região Nordeste, para voltar a produzir amônia e ureia, mas o negócio não prosperou. Para lembrar, no final de 2019, a Unigel assumiu o controle das fábricas de fertilizantes de Camaçari-BA e Laranjeiras-SE, que estavam hibernadas pela Petrobrás. A Unigel retomou a operação das plantas, mas chegou a suspender as atividades no ano passado, alegando que a queda dos preços da ureia e o preço do gás natural estavam inviabilizando o negócio.
Em novembro de 2023, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), uma estatal ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME), que produz rotineiramente relatórios técnicos muitíssimo bons, e que deveria ser mais usada para pautar ações governamentais, produziu um relatório que mostra qual deveria ser o preço do gás natural no Brasil para viabilizar novas fábricas de fertilizantes nitrogenados. O resultado ficou entre US$ 3 e US$ 9 por milhão de BTU, a depender das condições do mercado e tamanho do investimento.
Também é possível descobrir qual o preço do gás natural praticado no Brasil segundo informações do próprio MME. O boletim de acompanhamento da indústria de gás natural traz muitas informações, além do preço. Por exemplo, 80% do gás natural produzido no Brasil é extraído no mar, e a mesma proporção está associada a petróleo. No último boletim disponível, de outubro de 2023, temos várias informações sobre o preço do gás natural.
Por exemplo, o preço FOB (free on board, não inclui frete e seguro) do gás natural liquefeito importado era, na média até então, para o ano de 2023, US$10,38 por milhão de BTU (o exportado saiu por US$ 9,55). São Paulo consome 26% e o RJ 12% de todo gás canalizado disponível por distribuidora, e a indústria consome 67% do total disponibilizado.
As duas Fafens arrendadas pela Unigel consumiam em média 2% do total de gás natural disponível. O preço da Petrobrás para as distribuidoras estava entre US$ 11 (a maior parte dos contratos) e US$ 13 por milhão de BTU. Desses preços, US$ 2 correspondiam ao transporte e o resto à molécula. As termoelétricas pagaram US$ 5,26/MMBtu, enquanto a indústria pagou na média, um preço final entre US$ 23 e US$ 20/MMBtu, a depender da faixa de consumo, em 2023.
Se o leitor e a leitora me aguentaram até aqui, já entenderam onde quero chegar. Não há produção de fertilizantes nitrogenados possível com os preços do gás natural praticados no Brasil. Aliás, não há nenhuma indústria possível com esse preço de gás. Para piorar, o preço da ureia importada caiu para valores próximos àqueles praticados antes da pandemia (Figura 1).
O preço da molécula de gás natural (molécula + transporte) deve ficar em torno de US$ 11/MMBtu no Brasil, segundo a CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura). Para fins de comparação, nos EUA será US$ 2,50 e na Europa US$ 9,00.
Não há perspectiva, ceteris paribus, para a produção de fertilizantes nitrogenados no Brasil, e isso representa um risco enorme. O Brasil consome cerca de 12 milhões de t/ano desse tipo de fertilizante, sendo mais de 90% disso importado (com as Fafens de volta à hibernação, pode cravar 100%). O Brasil está entre os três maiores exportadores de alimentos do mundo, mas os outros dois (EUA e Rússia) têm gás natural barato. Num cenário em que conflitos bélicos internacionais são cada vez mais comuns (os que chamam mais atenção envolvem Rússia e o Oriente Médio, principais fontes da nossa ureia), a autossuficiência em fertilizantes deveria ser preocupação não só da Indústria, mas também, e principalmente, da Agricultura.
No entanto, posso estar mal-informado, mas não me consta que a tão poderosa bancada do Agro no Congresso Nacional se ocupe disso. Também não há esforço aparente do lobby das Indústrias, sempre muito ativo em buscar medidas compensatórias que só enxugam gelo, se ocupe em convencer a bancada do Agro a unir esforços com a indústria pelo preço do gás e pela viabilidade da produção nacional de fertilizantes.
Não dá para continuar fazendo a mesma coisa que se vem fazendo há 40 anos e esperar resultado diferente. O truque novo aqui tem nome: biorrefinarias e biogás.
No relatório do CBIE ao qual já me referi, o preço atual do biogás ficará entre US$ 14-15/MMBTU, ainda mais caro do que o gás fóssil, mas pode cair para algo entre US$ 8-9 já em 2026.
O biogás tem outra vantagem, que é a geração de créditos de carbono. A produção e uso de biogás evita a liberação de metano na atmosfera pela decomposição natural das fontes de biogás, e o uso de gás de origem fóssil.
No momento em que escrevo este texto, o preço do CBIO, crédito de descarbonização negociado na bolsa de valores de São Paulo é R$ 95, ou US$ 19. Um CBIO equivale 339 m³ de biometano vendido ou 13 MMBTU. Se eu não fiz nenhuma conta errada, o preço do CBIO equivale a um desconto de mais ou menos US$ 1,4/MMBTU no preço do biogás, ou seja, já fica muito parecido com o preço dos novos contratos da Petrobrás para as distribuidoras.
Só a agroindústria da região sul do Brasil tem potencial para produzir mais de 3 bilhões de m³ de biometano por ano, ou 8 milhões de m³ por dia. Isso é 13% da demanda nacional hoje. O potencial brasileiro de biogás seria de 231 milhões de m³ por dia, ou quase quatro vezes a demanda atual.
Mas há um problema na minha história, ou uma oportunidade. A produção de biogás é distribuída. O número do parágrafo anterior seria produzido em centenas ou milhares de plantas. A distribuição disso seria extremamente complexa e demandaria ainda mais gasodutos e uma mudança de paradigma. Uma biorrefinaria é uma minirrefinaria, pois o seu volume de barris de petróleo equivalente seria uma fração das atuais refinarias tradicionais.
Portanto, se queremos aproveitar todo o nosso potencial para o biogás, precisamos pensar em novas rotas de produção. Especificamente para a amônia (e a ureia), dificilmente seria viável o processo Haber-Bosch em uma biorrefinaria. Existem estudos para a produção de amônia por rotas eletroquímicas, mas essas rotas precisam se provar em plantas-piloto.
Alguém deveria estar pensando em como viabilizar plantas-piloto de amônia, ureia, metanol e outras moléculas nas plantas de biometano já existentes no Brasil.
Cabe menção também aos combustíveis sustentáveis de aviação (SAF, na sigla em inglês). Se tudo correr como o contratado, o Brasil exportará muito etanol para a Europa produzir o seu SAF, e importará uma boa parte desse SAF a partir de 2027, quando as empresas aéreas terão de começar a reduzir suas emissões de gases poluentes em voos internacionais.
Eu sei que esse futuro que eu menciono parece muito etéreo, mas ele já está atrasado uns 10 anos no Brasil. Só que o gás natural está 20 anos atrasado, nosso consumo anda de lado desde 2011, devido à diminuição de consumo de gás pela indústria.
Precisamos de gás natural barato para anteontem. O que precisamos fazer para termos gás a US$ 6 por milhão de BTU? Do alto da minha insignificância, acho que esse deveria ser o mantra da Indústria brasileira e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Segundo estimativa da EPE, 66% do preço do gás natural para pequenos consumidores industriais, até 20 mil m³, é devido à infraestrutura – gasoduto de escoamento e unidade de processamento, gasoduto de transporte e serviço local de gás canalizado. Outros 20% são tributos.
Já outro estudo, da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de janeiro), aponta que os tributos representariam 28,4% do preço do gás.
O estudo é de 2011, e apresenta uma comparação do preço do gás natural no Brasil sem imposto (US$ 13,12, não muito diferente do atual) e de uma média de 24 países com imposto (US$ 14,35). O estudo sugeria medidas para baratear o preço do gás natural para a indústria. Entre elas: Elaborar um Plano Nacional de Gás; desenvolver estratégia para a interiorização da malha de dutos; criar condições que incentivem a entrada de novos players no setor, em todas as etapas da cadeia.
O Plano Nacional de Fertilizantes de 2022, e o Gás para empregar de 2023, do governo federal, abordam essas questões. Já é um começo. Mas o Plano Nacional de Fertilizantes foi revisado no ano passado para (re)incluir a Petrobrás na produção de fertilizantes. Estão ouvindo a vitrola? “Voa, canarinho, voa…”
Referências
10 – Boletim de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural – Outubro de 2023.pdf — Ministério de Minas e Energia. https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/publicacoes-1/boletim-mensal-de-acompanhamento-da-industria-de-gas-natural/2023/10-boletim-de-acompanhamento-da-industria-de-gas-natural-outubro-de-2023.pdf/view. Acesso em 1º de maio de 2024.
ÁREA TÉCNICA DO TCU PEDE SUSPENSÃO DE CONTRATO DA PETROBRÁS E UNIGEL | Petronotícias. https://petronoticias.com.br/area-tecnica-do-tcu-pede-suspensao-do-contrato-da-petrobras-e-unigel/. Acesso em 1º de maio de 2024.
“Brasileiros investem em projetos de combustível sustentável no exterior”. Estadão, https://www.estadao.com.br/economia/brasileiros-investem-em-projetos-de-combustivel-sustentavel-no-exterior/. Acesso em 1º de maio de 2024.
CBIE Advisory 2014. Perspectivas para o Setor Energético em 2024 (Outlook 2024). Disponível em: https://static.poder360.com.br/2024/04/CBIE-Perspectivas-energia-2024.pdf
CIBiogás – Centro Internacional de Energias Renováveis – Biogás. Panorama do Biogás no Brasil 2022. CIBiogás (Brasil) Relatório Técnico nº 001/2023 – Foz do Iguaçu, CIBiogás, 2023
EPE 2019. Informe Técnico Competitividade do Gás Natural: Estudo de Caso na Indústria de Fertilizantes Nitrogenados. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Documents/EPE-DEA-IT-01-19%20-%20GN_Fertilizantes.pdf
EPE 2023. Gás natural como matéria-prima para Ureia – Análise de viabilidade econômica para o mercado brasileiro. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-772/IT%20Fertilizantes%20nitrogenados%20vf.pdf
Firjan 2011. Quanto custa o gás natural para a indústria no Brasil? Estudos para o desenvolvimento do estado do Rio de janeiro nº 9, dezembro 2011.
“Petrobras aprova início da reativação de fábrica de fertilizantes em Araucária (PR)”. Agência, https://agencia.petrobras.com.br/w/negocio/petrobras-aprova-inicio-da-reativacao-de-fabrica-de-fertilizantes-em-araucaria-pr-. Acesso em 1º de maio de 2024.
“Petrobras pretende retomar operação em fábrica de fertilizantes no Paraná”. Agência, https://agencia.petrobras.com.br/w/negocio/petrobras-pretende-retomar-operacao-em-fabrica-de-fertilizantes-no-parana. Acesso em 1º de maio de 2024.
“Quanto deveria ser o preço do gás para setor de fertilizante, segundo EPE”. agência epbr, 20 de novembro de 2023, https://epbr.com.br/quanto-o-gas-deveria-custar-para-o-setor-de-fertilizantes-segundo-a-epe/.
Texto: André Bernardo
Leia a matéria completa em: https://www.quimica.com.br/precisamos-de-biorrefinarias-e-biogas/
Fonte: https://www.quimica.com.br/precisamos-de-biorrefinarias-e-biogas/
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