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Carne Cultivada e Amônia Eletroquímica na Reindustrialização Brasileira

Nova indústria química: modular, distribuída e eletrificada- ABEQ

Olá, leitoras e leitores. Os textos desse espaço repetem exaustivamente que a reindustrialização do Brasil deveria passar pela busca de alternativas muito diferentes do que já foi feito, e que o momento mundial é propício para isso, porque boa parte dos processos químicos industriais deverão sofrer muitas modificações para se tornarem ambientalmente sustentáveis. Há muita produção acadêmica nessa direção, mas muito poucas alternativas comerciais. Dois caminhos oferecem alternativas promissoras para a indústria química, a biotecnologia e a eletroquímica, que praticamente não são consideradas fora dos seus nichos tradicionais – indústria alimentícia e farmacêutica para a primeira, e indústria metalúrgica para a segunda. Vamos tocar superficialmente aqui em dois exemplos radicais: carne cultivada e amônia eletroquímica.

Carne cultivada

Já se discutiu a questão das carnes cultivadas neste espaço (“O churrasco do seu neto vai ser bem diferente do seu”). Naquele texto, mencionaram-se todas as alternativas à pecuária tradicional, de aditivos alimentares que minimizem a emissão de metano pela fermentação entérica do gado, passando pelas alternativas vegetais e chegando a fontes não convencionais como insetos, larvas e, finalmente, proteína cultivada em laboratório.

Toda a motivação para essa discussão vem da previsão feita pela FAO (Food and Agriculture Organization, Organização para a Agricultura e os Alimentos) em 2015 que, considerando o aumento populacional e o aumento do consumo de proteína advindo da melhoria das condições socioeconômicas das pessoas, em 2050 o mundo teria 9,1 bilhões de pessoas consumindo 470 milhões de toneladas de carne. Para fins de comparação, a produção de carne era 295 milhões de t em 2017 e foi de 365 milhões de t em 2023. A preocupação é com o custo ambiental dessa produção. Por exemplo, a emissão de metano da agropecuária no Brasil responde por 75% do total, 15,5 milhões de toneladas em 20 milhões totais. A fermentação entérica responde sozinha por 14,2 milhões de toneladas (dados do SEEG).

É nesse contexto que o mundo olha para a carne cultivada como uma alternativa. Por exemplo, recentemente o fundo de investimentos de Jeff Bezos (fundador e principal acionista da Amazon) investiu US$ 30 milhões em um centro para o desenvolvimento de proteínas sustentáveis do Imperial College de Londres, cujo objetivo é justamente chegar à produção das tais carnes cultivadas.

A sustentabilidade da carne cultivada

Ainda há dúvidas sobre a sustentabilidade da carne cultivada. Existem artigos que propõem análises de ciclo de vida que concluem que carne cultivada seria quase três vezes mais eficiente em transformar colheitas em carne do que o frango, o animal mais eficiente, e, portanto, o uso de terras agrícolas seria baixo. As emissões de poluição atmosférica e relacionadas ao nitrogênio da carne cultivada também seriam menores devido a essa eficiência e porque a carne cultivada é produzida em um sistema contido sem esterco. Contudo, a carne cultivada seria intensiva no uso de energia e, portanto, a fonte de energia para o processo deveria ser renovável para garantir a renovabilidade do processo (SINKE et al., 2023).

Há, contudo, análises mais céticas a respeito das carnes cultivadas. Artigo de Casey Crownhart para o MIT Tecnology Review enfatiza o uso de energia do processo e menciona que há dois cenários a respeito da sua sustentabilidade, que ainda não foi definida. O artigo menciona que a produção de 1 kg de carne bovina gera em média 100 kg de CO2 equivalente (CO2e) como emissão de gases de efeito estufa. As carnes cultivadas gerariam de 10 a 75 kg de CO2e se utilizassem insumos e processos de purificação similares aos da indústria alimentícia, mas de 250 a 1000 kg de CO2e se utilizassem insumos e processos similares aos da indústria farmacêutica (farmoquímica). A incerteza se deve principalmente às endotoxinas eventualmente produzidas no cultivo e no grau de purificação necessário para a manutenção de níveis seguros desses compostos.

O processo de escalonamento da produção das carnes cultivadas ainda não está definido. Segundo o artigo, há duas empresas autorizadas pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, similar ao nosso Ministério da Agricultura e Pecuária) a produzirem e venderem “produtos de frango cultivados”, a Eat Just e a Upside Foods.

A Upside Foods possui uma planta piloto com capacidade máxima de cerca de 180 mil kg por ano, embora sua capacidade de produção atual esteja mais próxima de 23 mil kg. A primeira instalação comercial da empresa, que está atualmente em processo de projeto, será muito maior, com capacidade de milhões de kg por ano. De acordo com estimativas internas, os produtos da Upside devem consumir menos água e terra para serem produzidos do que a carne convencional, mas eles informam que precisarão produzir em uma escala maior para realmente medir e começar a ver o impacto que terão.

Já a Eat Just afirma que há “muitos motivos para ter esperança” sobre os impactos climáticos da carne cultivada, mas atingir essas metas depende de vários fatores vinculados à otimização e à ampliação do processo de produção, bem como ao projeto de futuras instalações de fabricação em larga escala.

O ponto desse texto é informar que é provável que em poucos anos haverá uma alternativa radicalmente diferente à pecuária tradicional e, se de fato essa alternativa for mais sustentável ambientalmente do que a pecuária tradicional, ela tomará boa parte do mercado da pecuária. O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo e é também o país com maior potencial para produzir energia renovável no mundo. Tinha, portanto, que estar nesse jogo.

Surpreendentemente, o Brasil já tem legislação que permitiria a existência de iniciativas comerciais de produção de carne cultivada. A resolução 839 de dezembro de 2023 publicada pela Anvisa regulamenta a produção de proteínas alternativas. Infelizmente, provavelmente não temos nenhuma empresa dedicada a isso. No artigo anterior sobre o assunto, mencionamos a Ambi Real Food, que era uma startup dedicada à produção de carne cultivada. Em 2023, a Ambi Real Food se fundiu com a Cellva e agora se dedica a tentar produzir gordura animal cultivada em larga escala, tendo, portanto, mudado seu foco de atuação. Há ainda a joint-venture da BRF com a israelense Aleph Farms, mas nesse caso toda tecnologia é israelense. Detalhe interessante sobre o processo é que a Aleph Farms imprime as peças de carne por impressão 3D, e o preço final do produto ainda é o obstáculo à sua maior disseminação.

Amônia eletroquímica

Amônia é uma obsessão neste espaço, um assunto muito recorrente. É inconcebível para este engenheirinho que um país de dimensões continentais cuja economia está apoiada na agropecuária seja dependente dos insumos de seus concorrentes para sustentar sua produção. Há poucas edições se discutiu aqui como o Brasil inviabiliza sua indústria nacional com o preço do gás natural.

(Longo parêntese: a Petrobrás que é desde sempre incapaz de fornecer gás a preços razoáveis vai se endividar de novo, e ficar ainda menos eficiente, para refinar mais e, surpresa, produzir fertilizantes. A indústria química vai fazer cara de paisagem, agarrada em barreiras alfandegárias que enxugam gelo há 40 anos)

Não tenho esperanças de que o gás natural tenha preços competitivos por aqui. Acho mais fácil tentar pular para o novo mundo porvir, aquele em que combustíveis fosseis sejam curiosidade histórica. Voltando para a amônia: produção eletroquímica do insumo.

Allen et al. (2021) abordam três rotas eletroquímicas para a produção de amônia e chegam à conclusão de que a mais eficiente é aquela que chamam de ‘célula alimentada de água’, na qual nitrogênio (obtido do ar por adsorção) e água alimentam o cátodo e o ânodo de uma célula eletroquímica com uma membrana de troca aniônica que retém os gases e permite a passagem da hidroxila. De modo que saia do cátodo amônia, nitrogênio e hidrogênio, e do ânodo saia oxigênio e água.


O cátodo também produz hidrogênio. O processo industrial separaria os componentes por adsorção e ainda contaria com uma célula de combustível para utilizar o hidrogênio gerado e obter parte da eletricidade necessária.

Os autores concluem que a planta consumiria 22 kWh por kg de amônia produzida.


Palavras finais

Há 249 grupos de pesquisa cadastrados no CNPq estudando eletroquímica e 20 grupos com amônia entre as suas linhas de pesquisa. Alguns estudam os dois assuntos, como o Grupo de Eletroquímica do IQSC/USP e o Laboratório de Energia Eletroquímica da Unicamp.

Não nos falta conhecimento para explorar esse tipo de alternativa, mas certamente faltam incentivos para a transformação de pesquisa em inovação. Linhas de fomento específicas e laboratórios-piloto multipropósito que permitam a avaliação de rotas químicas promissoras em escalas maiores poderiam ser objetivos dos Ministérios de Ciência e Tecnologia e de Indústria e Comércio.

Plantas de amônia que utilizem essa rota ou rotas similares podem ser instaladas em qualquer lugar com água encanada e eletricidade. O mesmo pode ser dito sobre as fábricas de carne cultivada. São mudanças de paradigma radicais. Amônia e ureia produzidas próximas à lavoura (capturando CO2, como ganho adicional). Bifes sendo impressos no centro de São Paulo (e dispensando desmatamentos adicionais para ampliar a área de pasto como ganho adicional). Sonhar ainda não paga imposto.

Referências

Allen, Jessica, et al. “Electrochemical Ammonia: Power to Ammonia Ratio and Balance of Plant Requirements for Two Different Electrolysis Approaches”. Frontiers in Chemical Engineering, vol. 3, novembro de 2021. Frontiers, https://doi.org/10.3389/fceng.2021.765457.

“Here’s What We Know about Lab-Grown Meat and Climate Change”. MIT Technology Review, https://www.technologyreview.com/2023/07/03/1075809/lab-grown-meat-climate-change/. Acesso em 12 de agosto de 2024.

IChemE. Bezos funds US$30m sustainable protein lab as Imperial engineers seek to revolutionise food production. https://www.thechemicalengineer.com/news/bezos-funds-us-30m-sustainable-protein-lab-as-imperial-engineers-seek-to-revolutionise-food-production/. Acesso em 12 de agosto de 2024.

Nacional, Imprensa. RESOLUÇÃO -rdc No 839, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2023 – DOU – Imprensa Nacional. https://www.in.gov.br/web/dou. Acesso em 12 de agosto de 2024.

SEEG – Sistema de Estimativa de Emissão de Gases. https://plataforma.seeg.eco.br/?_gl=1*t3qt5p*_ga*MTIyMjUyNDg3Mi4xNzIzNTUzMzQz*_ga_XZWSWEJDWQ*MTcyMzU1MzM0Mi4xLjAuMTcyMzU1MzM0Mi4wLjAuMA.. Acesso em 12 de agosto de 2024.

Sinke, Pelle, et al. “Ex-Ante Life Cycle Assessment of Commercial-Scale Cultivated Meat Production in 2030”. The International Journal of Life Cycle Assessment, vol. 28, no 3, março de 2023, p. 234–54. Springer Link, https://doi.org/10.1007/s11367-022-02128-8.

O AUTOR

André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP, com mestrado em Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos pela Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e Doutorado em Engenharia Química pela UFSCar. Trabalhou no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e em diferentes indústrias químicas. Atualmente é professor do departamento de Engenharia Química da UFSCar. contato: abernardo@ufscar.br

Fonte: https://www.quimica.com.br/carne-cultivada-e-amonia-eletroquimica-na-reindustrializacao-brasileira/

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